O diagnóstico do estado mundo – “a nossa casa comum” – é
avassalador. Nas primeiras páginas da encíclica “Laudato si”, publicada ontem,
o Papa Francisco avisa que nunca antes, em 200 anos, tratámos tão mal o planeta.
E as consequências, avisa, já estão à vista. O aquecimento global e as
alterações climáticas são galopantes, os recursos naturais escasseiam, o fosso
entre ricos e pobres é cada vez maior, a economia deixou de estar ao serviço
das pessoas e a política está manchada pela corrupção, tendo-se tornado numa
espécie de marioneta dos grandes poderes e das grandes empresas – que exploram
os mais pobres e os mais frágeis. No fim de tudo, o ser humano perdeu toda a
liberdade de acção. Infeliz e solitário, está entregue às garras de um
consumismo sem precedentes.
Num texto polémico sobre ecologia – mas que se debruça sobre
os sistemas financeiros e a crise de ética e de valores –, Francisco atribui
parte dos problemas actuais à “cultura do descarte
” que se instalou nas
sociedades e em que as “coisas e os seres humanos se convertem rapidamente em
lixo”. Esta ânsia consumista, diz o Papa, leva a que se esteja a produzir,
anualmente, centenas de milhões de toneladas de resíduos. “A terra, a nossa
casa, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo”. A
poluição, acrescenta Francisco, afecta cada vez mais a saúde, particularmente a
dos mais pobres, causando milhões de mortes prematuras. E a culpa é da acção
humana: “Se a tendência actual se mantiver, este século poderá ser testemunha
de mudanças climáticas inauditas e de uma destruição sem precedentes dos
ecossistemas, com graves consequências para todos nós”, avisa.
Ao longo das 200 páginas, o Papa ataca várias vezes os
poderes políticos e económicos, acusando-os de não estarem ao serviço das
pessoas e da vida humana e de se concentrarem “em mascarar os problemas ou
ocultar os seus sintomas” em nome do dinheiro.
uns com tanto... Certo é que os recursos naturais –
explorados de forma selvagem pelas grandes empresas e pelos países mais ricos –
são finitos. Um exemplo é a água, que escasseia em regiões como a África,
enquanto que nos países desenvolvidos se gasta demasiado e se privatiza o seu
abastecimento, tornando um bem que é de todos “numa mercadoria sujeita às leis
do mercado”. As desigualdades são aliás fortemente criticadas na carta – que
apela aos países mais ricos que se sacrifiquem pelos mais pobres, cedendo os
recursos necessários para garantir que exista dignidade humana em todas as
partes do mundo. Os responsáveis pelo
fosso, garante o Papa, são os políticos e os poderosos que, muitas vezes, não
conhecem a realidade dos mais fracos: “Vivem e reflectem a partir da comodidade
de um desenvolvimento e de uma qualidade de vida que não está ao alcance da
maioria da população mundial”. E se em algumas parte do mundo há quem morra com
fome, noutras zonas estraga-se. O Papa chama a atenção para o desperdício de um
terço dos alimentos produzidos e recorda que “a comida que se desperdiça é como
se fosse roubada da mesa do pobre”. Tudo isto obriga, diz Francisco, obriga a
repensar a “ética das relações internacionais” e a acção de empresas
multinacionais que usam países africanos para exportar resíduos sólidos e
“fazer aquilo que não podem fazer nos países que lhes dão o capital”. Só que a
política internacional falha em nome do dinheiro: “A submissão da política à
tecnologia e à finança demonstra-se na falência das cimeiras mundiais sobre o
meio ambiente. Há demasiados interesses particulares e, com muita facilidade, o
interesse económico chega a prevalecer sobre o bem comum”, alerta a encíclica.
O mundo está assim dominado pelos poderes económicos, num sistema mundial
“onde predomina uma especulação e uma busca de receitas
financeiras que tendem a ignorar” a “dignidade humana e o meio ambiente”.homens
infelizes e sós A “falta de ética” nas relações entre os Estados e na Finança e
o consumismo desenfreado estão a conduzir o homem à infelicidade. À mercê de um
sistema de produção massificado e de uma economia implacável, o ser humano está
cada vez mais ansioso, vazio e solitário, refugiando-se no mundo digital, onde
não se “ama com generosidade”. O mundo,
garante o Papa, está numa encruzilhada. “Nunca a humanidade teve tanto poder
sobre si mesma, mas nada garante que o utilizará bem”. Não há nada de errado
com a ciência e a tecnologia em si. O problema é estarem concentrados nas mãos
de um punhado de gente. Além disso, “o homem moderno não foi educado para o
recto uso do poder” porque o mundo cresceu em tecnologia, mas não cresceu em
“responsabilidade, em valores e em consciência”. Francisco ressalva que não é
preciso “voltar à Idade da Pedra”, mas diz que é “urgente” que a ciência e a
tecnologia recuperem valores e olhem para as pessoas. Em coisas tão simples
como reconhecer que todos os seres humanos têm direito ao trabalho. “Mas a
orientação da Economia favoreceu um tipo de progresso tecnológico cuja
finalidade é reduzir os custos de produção com base na diminuição de postos de
trabalho”, critica, deixando uma aviso: “Renunciar a investir nas pessoas para
obter maior receita imediata é um péssimo negócio para a sociedade”.
a corrupção na política “Vários países são governados por um
sistema institucional precário, à custa do sofrimento do povo e para benefício
daqueles que lucram com este estado de coisas. Tanto dentro da administração do
Estado como na sociedade civil registam-se, com demasiada frequência,
comportamentos ilegais”, acusa o Papa. Os políticos, descreve a encíclica,
vivem numa espécie concubinato com os interesses económicos e as suas
estratégias focam-se em “resultados imediatos”, respondendo a “interesses eleitorais”.
A política, avisa Francisco, “não deve submeter-se à economia”, mas “hoje
alguns sectores económicos exercem mais poder que os próprios Estados”. Esta
“perda de sensibilidade social” é exemplificada com “a salvação dos bancos a
todo o custo, fazendo pagar o preço à população, sem a firme decisão de rever e
reformar o sistema inteiro”. Francisco pede uma nova política, que fuja da
corrupção e “seja capaz de romper” a “lógica perversa” de não tomar verdadeiras
decisões corajosas.
Boa parte dos problemas do mundo, garante o Papa, seriam
resolvidos se houvesse mais “amor civil e político”. “É necessário voltar a
sentir que precisamos uns dos outros, que temos uma responsabilidade para com
os outros e o mundo, que vale a pena ser bons e honestos. Vivemos já muito
tempo na degradação moral, baldando-nos à ética, à bondade, à fé, à
honestidade; chegou o momento de reconhecer que esta alegre superficialidade de
pouco nos serviu”, lê-se na encíclica. É que através do amor, garante o Papa
Francisco, é mesmo possível “construir um mundo melhor”.
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